A edificação implanta-se na margem norte do Grand Canal de Veneza, e a fachada de mármore esculpida evidencia seu esplendor original. O Palazzo Santa Sofia — ou o Ca D'Oro (Casa do Ouro) — como também é conhecido, é um dos exemplos mais notáveis da arquitetura gótica tardia veneziana, que combinou elementos existentes na arquitetura gótica, mourisca e bizantina em uma estética única, que simbolizava o império mercantil cosmopolita da República Veneziana. Construído para servir como residência do rico empresário e político veneziano Marin Contarini, o palácio passou por um grande número de proprietários e renovações durante sua vida útil antes de finalmente tornar-se um museu para a pintura medieval e escultura. [1]
O início do século 15 viu um período de destaque sem precedentes para a jovem República de Veneza - precursora da "Idade do ouro" da Sereníssima. Uma sucessão de vitórias militares nas décadas anteriores havia absorvido as cidades continentais de Verona e Vicenza para a República, transformando a cidade-estado marítima em uma das mais poderosas entidades na península italiana. Os recursos obtidos com essas novas aquisições, combinado com impressionantes redes de comércio de Veneza, mostrou-se tão rentável que, pelos anos 1420, Veneza foi oficialmente o Estado mais rico, não só na Itália, mas de toda a Europa. [2]
Em meio a essa atmosfera de otimismo, Marin Contarini encomendou a construção de seu novo palácio nas margens do canal principal da cidade. A família Contarini estava entre as mais influentes famílias nobres de Veneza; de fato, foi sob a liderança de um Contarini que a República havia derrotado Genova, em 1380. Após a batalha, o clã continuou a ter importância, tanto mercantil como em assuntos políticos. Era de se esperar, portanto, que a nova casa de Marin buscasse refletir simbólica e fisicamente a posição de sua família. [3]
Seu tamanho era para ser o primeiro indicador de grandeza do novo palácio. Cidades medievais eram espaços densos e lotados. Veneza — embora diferente em sua formação morfológica, com mais de 100.000 habitantes — não era exceção. [4] Portanto, ser capaz de adquirir um terreno de 35 por 22 metros, no coração de Cannaregio, já era extravagante por si só. [5] A maior expressão do edifício de riqueza e poder, no entanto, seria alcançado através da sua fachada voltada ao mar.
Tal como acontece com muitos edifícios em Veneza, o Palazzo Santa Sofia foi construído usando principalmente tijolos, mais leve e barato do que a pedra. A prática usual na época era revestir as estruturas de tijolos com argamassa de cal, o que proporcionava um acabamento esteticamente agradável; os tijolos do Palazzo Santa Sofia, no entanto, foram revestida com mármore [6,7] Não é de se admirar que a construção do edifício tenha exigido a mão de obra de quarenta pedreiros – metade dos artesãos envolvidos em todo o projeto. Os mais notáveis destes artesãos pedreiros foram Zane e Bartolomeo Bon, pai e filho que contribuiriam com seus conhecimentos para diversos palácios e estruturas cívicas em toda Veneza. [8]
A combinação de várias dezenas de artesãos trabalhando em uma única fachada por mais de uma década resultou em um complexo mosaico de elementos decorativos. Os ornamentos diferem de andar a andar, já que o trabalho na fachada foi completado por dois grupos de pedreiros com dois mestres diferentes, todos em diferentes épocas, antes de serem montados sob a supervisão de um outro mestre de obras. Alguns elementos, como as balaustradas nos níveis superiores ou os capitéis apoiando a arcada do nível do solo, foram reciclados da casa que anteriormente estava no terreno; todo o resto foi esculpido especificamente para o novo palácio. [9]
Por mais opulenta que o mármore fosse, não era suficiente para satisfazer Marin Contarino. Muitos dos elementos decorativos do palazzo, como os elementos esféricos de pedra que coroam as ameias na linha do telhado, as folhas nos capitéis, e vários outros detalhes esculturais, foram posteriormente embelezados com folheado de ouro. Outros elementos foram pintados em tons brilhantes de azul ultramarino, preto, branco e vermelho, acentuando o fino trabalho em pedra abaixo. A tinta azul ultramarina era um indicador de grande riqueza, uma vez que era feito de lápis-lazúli triturados importados do Afeganistão. Veneza era a porta através pela qual pigmentos marinhos entravam na Europa; mercadoria que era considerada mais valiosa do que o ouro. [10] Apesar disso, foi o ouro na fachada que traria a impressão mais duradoura, até mesmo séculos após ter sido desgastado, o palácio conserva o apelido de Ca D'Oro- a "Casa do Ouro". [11]
A extravagância da fachada do canal contrasta com a relativa austeridade do restante do palácio. As paredes faceando o pátio interno não têm revestimento de mármore, deixando exposta a estrutura de tijolo da casa. Mesmo a parede leste ao virar da esquina da fachada permaneceu sem revestimento, apesar de ser visível a partir do próprio Grande Canal. Como estas fachadas não serviam como entradas principais à residência, tiveram menos prioridade decorativa; com exceção de uma porta de entrada de mármore extravagante para o pátio, Marin acabou usando grande parte de sua fortuna na fachada do canal. [12]
A estrutura interna do Palazzo Santa Sofia era típica para uma grande casa veneziana do período. A entrada cerimonial da casa não se localizava no portão do pátio, mas no cais privado, atrás da arcada ao nível do solo. A maioria dos vizinhos contemporâneos ao palazzo ofereciam um portal único relativamente modesto para a mesma função; Assim, a ampla arcada era vista não só como uma referência aos antepassados bizantinos, mas como uma grande porta de entrada ostensiva. O restante do andar térreo era tomado por dependências de empregados, espaço de armazenamento, o pátio e o escritório pessoal de Marin.
Os andares superiores, ou piani nobili, abrigavam as áreas de estar principal do palácio. Acessíveis apenas por uma escada exterior no pátio, ambos os pisos partilhavam uma planta quase idêntica: dormitórios, cozinhas, uma capela, e varanda (loggia) - tudo irradiando de um grande salão. Como ambos os pisos eram tão semelhantes — e especialmente como ambos contavam com uma cozinha — isso sugere que apenas um dos dois pode ter sido destinado ao uso da família imediata de Marin. É provável que o piso superior tenha sido ocupado por seu pai ou um de seus irmãos, um arranjo típico de um palácio veneziano. [13]
A obra começou em 1420 e não foi totalmente concluída, pelo menos até 1436. Após a morte de Marin Contarini em 1456, a casa foi passada repetidamente aos seus descendentes até ter sido abandonada em 1791. [3] Foi adquirida em 1846 pelo exilado príncipe russo Troubetzkoy, que deu de presente à famosa bailarina Marie Taglioni. O palácio passou por reformas desastrosas sob o comando de Taglioni; a escada gótica do pátio foi demolida, e muitas peças de pedra, incluindo a cabeça de poço ornamentada por Bartolomeo Bon, foram vendidas. [14]
Felizmente, o palácio mudou de mãos mais uma vez em 1894, tornando-se posse de Baron Giorgio Franchetti. Ele restaurou a maioria do que Taglioni destruiu; reconstruiu as escadas do pátio, desfez muitas das alterações na fachada famosa e recuperou os elementos escultóricos que haviam sido vendidos. [15] Uma vez que o seu trabalho de restauração foi completo, deixou o palácio ao governo italiano, que inaugurou-o como uma galeria de arte aberta ao público em 1927. [16]
Depois de perdurar por séculos de uso, abuso e reconstruções, o Palazzo Santa Sofia agora funciona como um testemunho da antiga glória da República de Veneza. Enquanto o famoso dourado já há muito desapareceu de sua fachada, a construção de pedra ornamentada e os apartamentos espaçosos permanecem exemplos emblemáticos de design de luxo em um império medieval na sua época mais gloriosa. Assim, pode-se dizer que a história tem sustentado as intenções originais do grande projeto de Marin Contarini; sua casa de ouro ainda permanece como uma das mais notáveis em toda Veneza.
Referências
[1] Jepson, Tim. Italy. Washington, D.C.: National Geographic, 2012.
[2] Goy, Richard. The House of Gold. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p5-15.
[3] Goy, The House of Gold, p23-47.
[4] Goy, The House of Gold, p10.
[5] Goy, The House of Gold, p47.
[6] R. J. Goy. Building Renaissance Venice: Patrons, Architects and Builders c. 1430-1500. New Haven: Yale University Press, 2006. p82-83.
[7] Goy, The House of Gold, p19.
[8] Goy, The House of Gold, p65-66.
[9] Goy, The House of Gold, p139-145.
[10] "Ultramarine," Pigments Through the Ages, accessed February 8, 2016, http://www.webexhibits.org/pigments/indiv/history/ultramarine.html, paragraph 1.
[11] Goy, The House of Gold, p227-228.
[12] Goy, The House of Gold, p51.
[13] Goy, The House of Gold, 52-57.
[14] Fasolo, Andrea. Palaces of Venice. Translated by Valerio Galeazzi. Venice: Arsenale Editrice, 2003.
[15] Fasolo, p17.
[16] Boulton, Susie and Christopher Catling. Venice and the Veneto. New York: DK Pub, 2010.
- Ano: 1430
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Fotografias:Wolfgang Moroder, Jean-Pierre Dalbera